Tem um disco que eu deveria ter dado mais atenção e escutado outras tantas repetidas vezes depois da primeira vez, mas que acabou ficando esquecido nas minhas compilações semanais: O Paraíso, de Lucas Santtana (sorry, amigo!). Deveria tê-lo escutado mais por diversos motivos. Em primeiro lugar, porque o disco fala sobre os problemas ambientais — e, por conseguinte, sociais, comportamentais e econômicos — que nós, todos os habitantes da Terra, sem exceção, estamos passando. Em segundo lugar, porque, mais uma vez, o compositor brinca e agrega gêneros distintos da música brasileira, relendo à sua maneira cada um — desde o samba e a bossa, até o pagoda baiano, a música caribenha, os juntando a mais um monte de outros elementos e ritmos.
![](https://miro.medium.com/v2/resize:fit:875/1*hGHOq94aF_QCPP5aJFIiBw.jpeg)
O fato do lançamento ter sido em janeiro pode ter sido uma das causas que me levaram a ouvir pouco o álbum, mas posso afirmar que ele está sendo uma bela companhia de fim de ano. O som do registro não esfria o corpo, mas refresca a mente como só acontece quando entro em uma reserva verde dentro da cidade — penso na sensação que tenho ao atravessar o parque trianon, por exemplo.
A premissa que guia o ál01bum é clara e a faixa título é logo a primeira: o melhor lugar do mundo é aqui e agora, na Terra, o nosso paraíso. “O Paraíso já está aqui” e “o paraíso já está em mim” quebram a ideia religiosa do éden ou de que o melhor ainda nos aguarda em outro plano espiritual. Que nada, a natureza é a força sagrada da nossa existência. Ela e sua mágica simbiose. E como isso se apresenta? Oras, num baião disfarçado, com um triângulo imaginário marcando o compasso.
“What’s life” é um dos pontos altos do disco, onde o Kraftwerk encontra o Psirico. Nessa músia, a voz calma de Lucas, como se fosse uma manhãzinha ensolarada de outono, canta a vida do macro ao micro. Existimos como resultado dos processos que acontecem há milhões e milhões de anos na Terra, no universo, nessa e em outras galáxias. “Life is a process”. “Life is your smile”.
Dentre as dez faixas, que somam pouco mais de 30 minutos, há duas releituras. Uma de Jorge Ben e uma dos Beatles. “Errare Humanum Est” é a escolha perfeita para permear a narrativa cósmica e terrestre, assinalando o fato de não sermos os primeiros seres que aqui habitaram. O ambiente sonoro cheio de efeitos de Jorge Ben ganha vida aqui com um arranjo magistral, com violoncelo e sopros compondo partes especiais, que se somam à base de percussão e violão. Em contraste, como já notado, é a faixa seguinte que explora uma espécie de samba rock a la Jorge Ben. A animada “Muita pose, pouca yoga” é cantada junto com Flávia Coelho e traz algumas frases criadas para o projeto Lambes do Mal, de Daniel Lisboa (cineasta e diretor do clipe “O Deus que devasta mas também cura”).
“La Biosphère” é a primeira canção de Lucas Santtana composta em francês — já que ele agora reside na França, onde está seu selo, o No Format, e foi por lá também que ele gravou esse seu nono álbum. E foi só nesta faixa que pensei em alguma possível conexão com Biophilia, álbum-projeto de Bjork, de 2011, que também nasceu do interesse e de uma preocupação com a natureza, e para o qual foram desenvolvidos uma série de novo instrumentos.
Certamente O Paraíso deixa transparecer aspectos de todos os trabalhos anteriores de Lucas Santtana, seja do engajamento de O céu é velho há muito tempo, da ambiência sonora de Three Sessions in a green house ou dos experimentos com voz e violão de Sem Nostalgia.
Por fim, destaco a versão feita para “The fool on the hill”, dos Beatles, que nos engana sonoramente. A princípio, pensamos que é uma bela adaptação da composição de John e Paul para a Bossa Nova clássica. Até que entra um maravilhoso solo de sax, do tipo que Stan Getz jamais faria, sem a bateria cool do jazz, mas com uma leve distorção no fundo e com a participação de Flora Benguigui (a la João e Astrud, só que não exatamente).