Crítica/Lançamento

Um dos primeiros álbuns de 2023, lançado em janeiro, ainda ressoando como novidade neste fim de dezembro

Por: Pérola Mathias, do Poro Aberto

Tem um disco que eu deveria ter dado mais atenção e escutado outras tantas repetidas vezes depois da primeira vez, mas que acabou ficando esquecido nas minhas compilações semanais: O Paraíso, de Lucas Santtana (sorry, amigo!). Deveria tê-lo escutado mais por diversos motivos. Em primeiro lugar, porque o disco fala sobre os problemas ambientais — e, por conseguinte, sociais, comportamentais e econômicos — que nós, todos os habitantes da Terra, sem exceção, estamos passando. Em segundo lugar, porque, mais uma vez, o compositor brinca e agrega gêneros distintos da música brasileira, relendo à sua maneira cada um — desde o samba e a bossa, até o pagoda baiano, a música caribenha, os juntando a mais um monte de outros elementos e ritmos.

Capa com pintura de Pintura de Jérome Witz
O Paraíso foi lançado em janeiro e apresentado no mesmo mês em show no Sesc Ipiranga. Nesse dia, me lembro do mundo caindo, de tanta chuva, poucas horas antes. Era mais um lembrete de que teríamos um ano de clima descontrolado, com chuvas catastróficas e calor intenso. 2023 foi o ano mais quente do registro histórico. E, ainda assim, os líderes mundiais não conseguiram definir acordos de não extração de combustíveis fósseis, nem de diminuição drástica de emissão de CO2.

O fato do lançamento ter sido em janeiro pode ter sido uma das causas que me levaram a ouvir pouco o álbum, mas posso afirmar que ele está sendo uma bela companhia de fim de ano. O som do registro não esfria o corpo, mas refresca a mente como só acontece quando entro em uma reserva verde dentro da cidade — penso na sensação que tenho ao atravessar o parque trianon, por exemplo.

A premissa que guia o ál01bum é clara e a faixa título é logo a primeira: o melhor lugar do mundo é aqui e agora, na Terra, o nosso paraíso. “O Paraíso já está aqui” e “o paraíso já está em mim” quebram a ideia religiosa do éden ou de que o melhor ainda nos aguarda em outro plano espiritual. Que nada, a natureza é a força sagrada da nossa existência. Ela e sua mágica simbiose. E como isso se apresenta? Oras, num baião disfarçado, com um triângulo imaginário marcando o compasso.

“What’s life” é um dos pontos altos do disco, onde o Kraftwerk encontra o Psirico. Nessa músia, a voz calma de Lucas, como se fosse uma manhãzinha ensolarada de outono, canta a vida do macro ao micro. Existimos como resultado dos processos que acontecem há milhões e milhões de anos na Terra, no universo, nessa e em outras galáxias. “Life is a process”. “Life is your smile”.

Dentre as dez faixas, que somam pouco mais de 30 minutos, há duas releituras. Uma de Jorge Ben e uma dos Beatles. “Errare Humanum Est” é a escolha perfeita para permear a narrativa cósmica e terrestre, assinalando o fato de não sermos os primeiros seres que aqui habitaram. O ambiente sonoro cheio de efeitos de Jorge Ben ganha vida aqui com um arranjo magistral, com violoncelo e sopros compondo partes especiais, que se somam à base de percussão e violão. Em contraste, como já notado, é a faixa seguinte que explora uma espécie de samba rock a la Jorge Ben. A animada “Muita pose, pouca yoga” é cantada junto com Flávia Coelho e traz algumas frases criadas para o projeto Lambes do Mal, de Daniel Lisboa (cineasta e diretor do clipe “O Deus que devasta mas também cura”).

“La Biosphère” é a primeira canção de Lucas Santtana composta em francês — já que ele agora reside na França, onde está seu selo, o No Format, e foi por lá também que ele gravou esse seu nono álbum. E foi só nesta faixa que pensei em alguma possível conexão com Biophilia, álbum-projeto de Bjork, de 2011, que também nasceu do interesse e de uma preocupação com a natureza, e para o qual foram desenvolvidos uma série de novo instrumentos.

Certamente O Paraíso deixa transparecer aspectos de todos os trabalhos anteriores de Lucas Santtana, seja do engajamento de O céu é velho há muito tempo, da ambiência sonora de Three Sessions in a green house ou dos experimentos com voz e violão de Sem Nostalgia.

Por fim, destaco a versão feita para “The fool on the hill”, dos Beatles, que nos engana sonoramente. A princípio, pensamos que é uma bela adaptação da composição de John e Paul para a Bossa Nova clássica. Até que entra um maravilhoso solo de sax, do tipo que Stan Getz jamais faria, sem a bateria cool do jazz, mas com uma leve distorção no fundo e com a participação de Flora Benguigui (a la João e Astrud, só que não exatamente).