Crítica

“Bom mesmo é estar debaixo d’água”: Disco verde translúcido. Lindo. Estética completamente voltada para a água, aliás, para as diferentes águas!

Por: Cláudio Palleta Jr

Recordo que meu primeiro contato com a música da baiana Luedji Luna foi em uma madrugada no ano de 2017, quando uma namorada, com acentuados hábitos noturnos, colocou para tocar “Acalanto”, enquanto fumava. Eu, que fingia dormir, fui imediatamente arrebatado pela letra, melodia e tudo que envolvia a música desconhecida.

“Quem está cantando isso?” perguntei – “Luedji Luna. Por quê??”, ela respondeu assustada.  Prometi nunca mais ouvir nada dela!

  Àquela altura, enquanto o Brasil se preparava para alçar um tacanha e iletrado capitão da reserva à condição de Presidente da República, eu não acreditava que uma artista contemporânea atingisse um nível tão elegante de musicalidade. O deserto de ideias em que vivíamos nunca fora tão árido quanto naquele momento. Luedji Luna, eu nunca mais escutaria.

 

Cumpri a promessa por longos cinco anos!

Desviei de qualquer coisa que me pudesse fazer pensar em Luedji Luna. Não sabia a cor do cabelo, a altura, tipo físico, tom de pele da artista. E isso em tempos de “hipermiatização” e “algoritimização da vida” pode ser considerado uma missão quase impossível. Ficou na lembrança meu “Acalanto” na madrugada, e só.

Em 2022 a Noize Record Clube (popular clube de colecionadores de Lp’s no Brasil) lançou em vinil “Bom mesmo é estar debaixo d’água”, segundo álbum de Luedji Luna, disco de  2020 e indicado ao Grammy Latino 2021 na categoria “Melhor Álbum de Música Brasileira”.

Respirei fundo, tomei coragem e decidi: “vai ser agora!”.

Começo aqui uma resenha em duas partes sobre o trabalho de Luedji Luna, seus dois álbuns (que considero clássicos instantâneos), a nova cara da música popular brasileira, e a voz de outras Bahias possíveis, cantadas belamente pela protagonista de nossa resenha.

 

“Bom mesmo é estar debaixo d’água”

Capa do álbum da Luedji Luna

Disco verde translúcido. Lindo. Estética completamente voltada para a água, aliás, para as diferentes águas! A dos mares, que banham Salvador, a das lágrimas,  que insistentemente percorrem as estradas dos rostos… Quase um álbum conceitual.

Fui novamente atingido em cheio. Lembro-me de ter ficado profundamente emocionado com as canções deste disco. Todas eram completas desconhecidas aos meus ouvidos e foi uma experiência sensorial interessantíssima ser apresentado a cada uma delas, aprender as letras, desbravar suas inspirações…

Foi este álbum, tocado em vinil, que efetivamente me apresentou Luedji Luna. Foi ali que eu conheci a mulher por detrás da mística que eu mesmo criei: Preta retinta, alta, imponente. Voz poderosíssima. Intimidadora e acima de tudo, Baiana!

Em linhas gerais, avalio que “Bom mesmo é estar debaixo d’água” é um disco sobre sentimentos, afetos, pertencimentos, romances, dissabores! É um álbum sobre o amor, sobre amores e suas consequências mais humanas.

O disco começa embalado pela cantiga “Uanga”, do poeta soteropolitano Lande Onawale, que traduz muito bem o sentido afetivo deste trabalho:

“O amor é coisa que moí muximba. E depois, o mesmo que faz curar”.  Ele diz.

Muximba é uma palavra africana que significa coração. Talvez seja essa uma atualização, bem mais pertinente, para o que cantou Vinícius de Morais em seus Afrosambas: “O amor só é bom se doer. Pergunte pr’o seu Orixá”.

Na segunda faixa LADO A temos a belíssima “Tirania”, que Luedji diz ter escrito ainda nos tempos de colégio para uma garota com traços que misturavam “nipônicos e pretos”. Tudo nessa música é feito com extrema elegância e nos faz lembrar que o amor é o sentimento superior entre todos os outros.  Luedji eleva as canções e composições sobre o amor. Nem o blasé das histórias românticas, nem o cafona e medíocre (por que não líquido?) da contemporaneidade. A medida certo do açúcar e do afeto.

É inegável que ao falarmos do sentimentalismo presente em “Bom mesmo é estar debaixo d’água” também estamos falando de toda a experiência concreta que Luedji Luna nos traz: a ancestralidade, os traumas, o mundo visto não a partir do centro, mas sim da periferia. Estamos aqui falando de uma experimentação completamente diferente do que é o amor e ela é importante porque nos prova que os sujeitos políticos, antes de tudo, são sujeitos. Eles choram, sofrem, se apaixonam, traem, são traídos, são seres de carne e osso, vivendo situações concretas a partir de suas próprias construções reais e sentimentais.

Na belíssima “Chororô” Luedji fala de solidão, mas afinal quem é feliz sozinho?

“Não tenho um amor que me ame. Um homem que aconchegue e guarde. Nem uma mulher eu tenho” Ela diz, lembrando-nos que este é um disco de canções sobre o amor e o que ele nos faz sentir!

A faixa que dá título ao disco, sexta no LADO A, é um “musicão”, daquelas que tocam repetidas vezes nas rádios. Começando com uma ótima vocalização, que “gruda” a canção na cabeça e faz sucesso com as multidões, nos shows da cantora, a música reforça a estética marítima do disco e dá gás ao tom romântico presente em todo este trabalho. Segundo a própria Luedji, em entrevista à Noize, foi só após essa canção que ela assumiu que iria “cantar o amor”.

“Bom mesmo é estar debaixo d’água” é um daqueles discos que curiosamente tem o LADO B melhor do que o LADO A. Fonograficamente falando, isso não é lá muito habitual. É comum que a indústria opte pela colocação dos maiores “hits” na primeira parte da obra, garantindo que essas músicas sejam mais escutadas, toquem mais nas rádios, aplicativos de streaming e etc…

Na faixa 1 do LADO B há, pra mim, a grande canção do disco. O clímax. Lençóis tem letra da compositora mineira Cidinha da Silva e um arranjo deslumbrante. Começa com uma levada de piano que parece homenagear (ou fazer referência) ao clássico “Seu eu não te amasse tanto assim”, da diva baiana Ivete Sangalo. Sua letra trata do fim da solidão, do encontro a um novo amor, da paz indescritível que é não estar “só diante da imensidão do céu”.

A faixa ganha um maravilhoso plus com a inclusão do poema “Quase”, da brasiliense Tatiana Nascimento e que é recitado na íntegra ao final da música. Irreverente, coloquial e certeiro, o poema resume bem a mensagem impregnada no disco de Luedji Luna: os amores são tortos, tortuosos, frutos de nossas experiências, traumas, ancestralidades.  Os amores são importantes!

 

Tatiana recita:

 “Me dá um pedaço do seu amor?

Só um pedaço mesmo

Não te quero inteira não

Não te quero toda

Nem demais

Só aquele pedaço tosco

Lascado, quebrado, fodido, moído

Caído no chão, joelho ralado, doído

(…)”

 

Por mais que pareça preciosismo de minha parte, “Bom mesmo é estar debaixo d’água” é um disco sem pontos baixos. É uma tempestade perfeita. A combinação entre a maturidade artística de Luedji Luna (cunhada após sua estreia meteórica em “Um corpo no mundo”, de 2017), uma sonoridade que vai buscar o que há de melhor na música africana contemporânea, e letras que já podem ser colocadas no mais alto patamar da música brasileira.

“Bom mesmo é estar debaixo d’água” é um disco que arrebenta paradigmas artísticos traçados tanto por conservadores quanto por liberais, uma vez que se apresenta, sem vergonha e nem culpa, como um álbum de canções amor, o que pode levar ouvintes menos atentos a taxá-lo como antiquado ou blasé, quando na verdade mais parece que esses sentimentos são ressignificados nas canções, apresentados em um novo prisma que amplia a visão sobre o amor e como ele é diferente se visto a partir de diferentes perspectivas.

Na segunda parte desta análise sobre a música de Luedji Luna, contarei para vocês minhas impressões acerca de “Um corpo no mundo”, que apesar de ser o primeiro disco da cantora, foi o segundo que escutei. Por lá, também pretendo analisar qual é a Bahia que Luedji Luna nos apresenta, quem são as vozes pelas quais ela canta e o que podemos esperar no futuro da artista e na música popular brasileira.