Crítica/Disco

Os motivos por trás do impacto de CAJU e a potência da representatividade na música brasileira

Por: Pérola Mathias, do Poro Aberto

*Eu já havia publicado esse texto na Newsletter do Poro Aberto e agora deixo ele disponível também aqui no Medium.

Não é meu disco favorito do ano. Mas não podemos negar que ele é um sucesso e virou uma febre. O motivo? Não sejamos ingênuos, provavelmente o investimento foi pesado, mas o disco, sobretudo, comunica. Comunica através dos ritmos, dos arranjos, das letras confessionais. Uma resenha escrita em inglês, por um brasileiro, num site de reviews menciona que o disco “is Brazil all around the corner and that’s exactly what makes this so special for me”.

Essa semana fiz um vídeo desses com um formato que o algoritmo deveria gostar — ele não gostou — levantando cinco motivos pelos quais o álbum foi para o topo das paradas e tem feito Liniker esgotar a bilheteria de seus shows: 1) cada faixa se remete a um ritmo/gênero/estilo; 2) letras confessionais e que geram identificação nas questões amorosas e existenciais; 3) buscou criar um arco narrativo completo; 4) bem produzido; 5) muitos feats de peso.

Com relação ao primeiro motivo não tem muito o que explicar, né? Agrada gregos e baianos, dentre os ouvintes de música brasileira pop. “Ai, mas os arranjos são muito cafonas e manjados”. Beleza, é porque o disco não é para você. Eu também não acho que o crescendo da orquestra em “Ao teu lado”, que traz Anavitória na voz e Amaro Freitas no piano, seja uma peça musicalmente disruptiva — ela é no sentido de ser uma música de 7 minutos dentro de um disco de música pop, e só. A metáfora da tecelagem? Hum, poderia ser pior.

Por outro lado, o pagodinho de “Febre” é por demais cativante. Às vezes estou com essa música na cabeça e me embanano, misturando com os versos “uma taça de chandon, um calor no edredom”, bom, bom. E por falar em edredom, tem “Papo de Edredom”, que é uma aproximação safada de Djavan, que o cita na letra, inclusive, com a batida mais lenta e espaçada e feat com Melly, que canta sexy para um c…

Eu confesso que não curto esse lance dos artistas usarem artifícios como áudio de WhatsApp ou dar instruções ao ouvinte. Também estou um pouco cansada de discos com muitas vinhetas — e é agora que serei cancelada por metade da música independente brasileira. Desculpa, mas acho que são recursos que devem ser usados muito pontualmente e há diversas outras maneiras de experimentar com happenings e colagens na música e no álbum. O que faz com que esses recursos estejam tão presentes nas produções atuais talvez seja o fato de que vivemos a época do single, do imediatismo, dos lançamentos urgentes. Tudo que vai contra isso é um manifesto, justíssimo.

Os feats vão além da criação artística, da troca e do encontro. Eles praticamente viraram uma estratégia de sobrevivência. É sobre o fã de um enxergar o outro artista. Talvez um fã de Anavitória chegasse com mais dificuldade na música de Liniker sem essa ponte. Talvez a música de Liniker seja a música sugerida pelo algoritmo na hora de fazer uma playlist própria para um momento ou espaço comercial. Talvez um cara de 40 anos, branco, cheio de preconceitos e verdades limitadas, comprando batata no Pão de Açúcar ouça, goste e sequer saiba que se trata de uma mulher trans — e quando ele for ver, já era, a música já vai estar nele.

Isso é transpor barreiras e limites que são mais sociais do que estéticos. Mas ao ver que Liniker, agora, alcança um outro patamar de público, precisamos discutir que, sim, representatividade importa. Liniker é uma cantora negra e trans. Quantas milhares de outras pessoas queer não esperaram pelo momento em que uma delas estivesse lá, brilhando, dando esperança de que: sim, é possível; sim, essa pessoa fala diretamente comigo, com a minha dor, com o meu prazer, com a minha vivência.

Ainda ontem, antes de ir à Casa de Francisca, conversava com dois amigos e falávamos sobre isso. Um deles, Igor, disse que ficou surpreso ao chegar no sertão do Cariri para um festival e ver que, ali, plateia, ao assistir ao show de Liniker bem antes de CAJU, cantava todas as músicas do começo ao fim. Já com Paula, falávamos da potência que a carreira solo de Maria Beraldo e suas composições ou interpretações definitivamente lésbicas vêm ganhando. Como diriam os jovens, é sobre.

Eu também gosto do toque do analógico na gravação de CAJU. A gravação em fita dá uma textura sonora que me prende à audição para além do combo melodia, harmonia e ritmo. É o tchans a mais.