Este texto é o relato de alguém encatado pela música de Bonga e pela musicalidade de artistas angolanos como Liceu Vieira Dias, Belita Palma, Waldemar Bastos e Paulo Flores. Pretendo aqui descrever o encontro de sonoridades africanas e afro-diaspóricas a partir de uma escuta atenta à poesia presente nos sons dos instrumentos e no texto cantado.
O disco Raízes de Bonga (1975)* traz um rico encontro de músicos de várias nacionalidades. Temos Bonga, angolano, Tião (Sebastião Perazzo) e Fernando Falcão, brasileiros, e Jó Maka, guineense. O disco foi lançado pelo selo musical Morabeza Records, fundado por Djunga d’Biluca, cabo-verdiano radicado em Roterdam, na Holanda, país onde Bonga passou boa parte de seu exílio, devido a guerra pela independência de Angola. Pelo mesmo selo saíram os outros dois discos anteriores de Bonga: Angola 72 e Angola 74. Na ocasião percussionista Fernando Falcão estava exilado na Europa. Na década de 1970 ele colaboraria com nomes como Alceu Valença e Fagner.
“Agora remédio já tem pra curar de nós sofrimento”, escutamos em kriolo na canção “Ramedi Djá Tem”, um canto a favor da liberdade dos povos africanos que nos anos iniciais da década de 1970 viveram intensa convulsão social que findaria em processos de independência nacional. A canção soa entre uma morna (ritmo caboverdiano) e um samba, com um elemento em comum, o cavaquinho.
O Brasil teve forte influência cultural do povo africano bantu, vide a criação do samba moderno no início do século XX, no Rio de Janeiro. A Angola de Liceu Vieira Dias, líder do grupo N’gola Ritmos, recebeu influência do então nascente samba brasileiro na criação do semba angolano. Esse gênero também bebeu de uma considerável dose da musicalidade da américa central, de rumbas e merengues cubanos. Vale lembrar que Cuba teve forte presença no processo de independência do país africano.
Por vezes, quando ouço o semba, escuto um eco da música paraense e o sotaque melódico que está nas guitarradas e nas lambadas, que escoaram do norte até o nordeste brasileiro (Aldo Sena, Pantoja do Pará, Ivanildo Sax de Ouro), embaladas por instrumentos de sopros. A melodia tocada pelo sax de Jó Maká soa bem próximo dessa sonoridade na música “Mochorinho Codé”, mas, ao mesmo tempo, é afetada pela condução rítmica que lembra as mornas caboverdianas. Não dá pra deixar de citar a baixaria do violão de Tião Perazzo na faixa. De repente, a viola caipira irrompe e ativa um ar brejeiro, e a construção de uma sonoridade luso-africana. Há várias linhas que se atravessam participando de uma construção sonora rica e inclassificável.
“Piza na fulô” é um dos encontros mais bonitos, tema do maranhense João do Vale cantado por Perazzo e Bonga. O surdo marca um ritmo que lembra um xote, a voz de Bonga passeia livremente pela melodia, assim como os sopros. O lado A termina com “Homenagem ao fogo-negro” acompanhada por um cavaquinho. Nesta faixa, o dikanza (instrumento de madeira que lembra um reco-reco) é tocado por Bonga.
O lado B começa falado e logo entra um tambor. Um apito soa. Os batuques soam como toques de candomblé. Bonga fala em uma língua angolana, faz uma prece. Sua fala vira canto. No meio da canção, o violão entra. Bonga diz em kriolo. “Destino”. “África”. “Nova vida”. “Gente de fora, já vai embora”. “Gente de nós, já volta pra nossa terra”.
Em “Rebita”, Bonga toca gaita com uma melodia que parece ser de uma cumbia, mas as percussões apontam mais para um samba. A penúltima e mais longa faixa é “Capoeira”, momento em que o berimbau se encontra com o dikanza. Os instrumentos vão se reconhecendo, propondo desafios uns aos outros. As vozes de Perrazzo e Bonga se encontram. Já no fim, os instrumentos reaparecem a sós e se agitam. A faixa “Kiosque” vai na direção do samba e carrega em si algo da saudade lusitana. Jó Maká improvisa. O violão pontua com suas baixarias enquanto o dikanza garante o tempero.
Sinto que a música angolana traz intensidade tanto nos climas sonoros mais tristes, quanto nos mais alegres. É possível enxergar a herança afro-diaspórica latino-americana tecendo novos caminhos, nesse encontro de nacionalidades. É um momento de celebração, em que a dor não se esconde.
As conexões de artistas exilados no disco Raizes é a marca forte deste trabalho. Pensemos em como os elementos são combinados, em como as cores musicais se formam fazendo surgir o novo.
No labirinto das rotas do tempo os artistas se encontraram. Não há como ouvir Raizes e não se deixar afetar pela conversa musical tecida pela solidariedade apontando para um mundo de mais dignidade e liberdade frente os momentos de violência opressiva. Os ecos vindos de 1975 servem inclusive para nos atentar que a árdua tarefa da solidariedade em prol de um mundo que ultrapasse as barreiras do colonialismo ainda permanece como trabalho a ser realizado no tempo presente. Que possamos, então, reouvir o disco quantas vezes for preciso para realimentar nossos desejos, ouvidos e vidas.
- *A intenção do texto não é fazer uma meticulosa análise da ficha técnica, mas sim destacar o trabalho do artista angolano Bonga em colaboração com os músicos brasileiros que serão apresentados nesse texto. Infelizmente acabo desconhecendo a nacionalidade do flautista Kim, que aparece nos créditos musicais.