Imagem: Deborah Ann Harry em ação, em registro de Davi Nicolas
Não os conheci em um restaurante, mas era quase um debutante quando ouvi pela primeira vez o Parallel Lines. Trechos de Heart of Glass desbloqueavam-se em minha memória de um comercial de coletâneas da Som Livre (que, mesmo não o tendo possuído, aparentemente moldou uma parte importante de minha personalidade) enquanto me aprofundava nas faixas de um dos discos que, para muitos, foi responsável por levar o punk ao mainstream.

Mas como um adolescente nordestino, no auge da sua era Disney Channel, deu de cara com as linhas paralelas que jamais se encontrarão? Meu amor por horror explica: adivinha qual é o tema de Tiffany em A Noiva de Chucky? Simplesmente uma das melhores músicas já feitas na história da humanidade: Call Me. Originalmente parte da trilha sonora de Gigolô Americano e (infelizmente) a única produção de Giorgio Moroder para a banda, lhe digo que minha vida não foi mais a mesma desde que uma boneca assassina acendeu um cigarro, meteu um loiro platinado e disse, no auge de seus 35mm: “Barbie, morra de inveja”.
Por anos, não foi a criação da Mattel que morreu de inveja e sim, eu: inveja de quem viveu o auge da minha banda preferida. De quem esteve lá no CBGB vendo tudo isso acontecer. De quem pôde estar numa lojinha de discos comprando o primeiro vídeo álbum da história, Eat to The Beat, ou até participado das gravações de alguns clipes, como o de Atomic. Na minha cabecinha teen, jamais teria a oportunidade de vivenciar Deborah Ann Harry sendo a ultimate mise en scene de um show, ainda mais morando aqui no Nordeste.
Eu já tinha perdido a única performance ao vivo do High School Musical. O show de Sandy & Junior no Nogueirão? Meus pais nem me contaram pra não terem que me aturar implorando pra mais 2h da sessão terrorismo que toda criança que desenvolve gosto musical faz. Nem quando o Rouge milagrosamente veio parar por Assu eu tive a oportunidade de mandar um asereje ao vivo. Por que, um dia, a vida me daria o prazer de ver composições da dupla de compositores mais legal da história do mainstream (Harry/Stein) desde Lennon/McCartney?
Aprendi a viver no modo apesar de, permitindo-me apreciar e vivenciar os novos lançamentos que Blondie tinha para me dar. Sei mais as letras do Panic of Girls de 2011 que do No Exit (desculpa, Maria. Você não precisava ver essa), e talvez tenha sido um dos trẽs malucos que vibrou incessantemente ao descobrir a veia latina de Chris Stein com Ghosts of Downloads – desculpem amigos, mas Rave é uma das minhas músicas preferidas de todos os tempos!!!
Foi com esse espírito de morador da ilha das almas perdidas que fui arrebatado por Pollinator em 2017. Seria condenação ou destino o fato de que este seria o disco escolhido pela vida para o maior plot twist deste fã de Blondie desde sua primeira experiência com o Autoamerican?
Nessa altura do campeonato, até Cuba já havia vibrado ao som de Sugar on The Side e Rapture. O registro do Vivir en la Habana é um dos meus preferidos e tudo… e, mais uma vez, me pego dividido entre sonhar e viver no mundo real. Foi então que esses paralelos se encontraram em 2018, no Popload Festival: a primeira (e talvez única) apresentação do Blondie em nosso país. E olha, o universo bem que tentou conspirar contra minha presença ali, mas se nem os fãs da Lorde ocupando a grade como a plateia mais brocha desde idosos com disfunção erétil num bar de strip tease pôde atrapalhar o melhor show da minha vida.
Por pouco mais de uma hora, parecia que não estava vivendo no tal mundo real: a mulher da minha vida, no auge de seus 70 anos, estava cantando algumas das minhas músicas preferidas E falando sobre comer formigas? Demorou bastante tempo, mas o adolescente que juntou grana de lanche da escola pra comprar seu primeiro Parallel Lines em vinil estava ouvindo Heart of Glass ao vivo pela primeira vez. Óbvio que senti falta de Union City Blue ou X Offender (que voltou ao setlist na outra turnê, acredita?), mas o importante é que o impossível aconteceu: Debbie realmente cantou na minha frente. Clem Burke fez um solo de bateria do balacobaco como se fosse a coisa mais fácil do mundo. Chris, doente, não esteve lá para nos ouvir dedicar Heart of Glass a ele (ou para ver a gafe da Rolling Stone Brasil que, na época, fez uma matéria chamando Debbie Harry de sua esposa, ignorando completamente a existência da Barbara Sicuranza)…
Mas se a maré tá alta, diga a ela que estou segurando a barra: no dia seguinte, o maravilhoso grupo de fãs da banda tinha a informação de qual seria o portão de embarque da banda de volta para os Estados Unidos e eu, com a capa de um LP e alguns encartes de CD nas mãos, decidi que de um jeito ou de outro teria ao menos um autógrafo da minha artista preferida.
Outros fãs, mas não muitos, esperavam por semelhante chance e, infelizmente, diziam as más linguas que uma de minhas parceiras nesta empreitada era justamente uma maluca que havia causado o maior climão no hotel onde a banda estava hospedada momentos antes. Por questões de segurança, meio que ficou decidido que a banda não iria interagir com ninguém…
…Só não contavam que o fantasma dos downloads aqui, acostumado a pentelhar o pessoal do Blondie no Twitter, havia postado vídeos e fotos que foram vistos por ninguém menos que Clem Burke, também conhecido como o meu baterista favorito. Ele me viu ao lado de uma colega do grupinho, disse que lembrou de mim do Twitter, e assinou meu Eat to The Beat.
O segurança, meio chato pacas, recebeu alguma ordem de que a Debbie estaria sim assinando nossos álbuns, contanto que não houvesse confusão no embarque. E foi assim que um LP surradinho e de segunda mão comprado com dinheiro de lanche escolar se tornou um raro ítem de colecionador – e parte importantíssima desta história!
Em momentos tão singelos como esse, as palavras que fluíram aqui me faltaram lá, e se pudesse reviver tudo, não só teria levado a capa do meu VHS de Videodrome para Debbie assinar também, mas teria falado algo mais legal pro Clem. Foi graças a ele que passei a compreender melhor e valorizar a função da bateria na música, e foi com ele que pude sentir inúmeros sentimentos a partir deste instrumento.
Clem faleceu em abril deste ano, após uma silenciosa luta contra o câncer.
Anos depois, numa mesa de bar, meu melhor amigo está levemente embriagado e citando esta história. Ele também teve a oportunidade recente de interagir com seu artista preferido – Eric Clapton. Lembrar destes momentos, vindo de onde viemos e com todas as situações imensamente desagradáveis que fizeram o possível para que ele não acontecesse, é também lembrar de um Eu que mesmo sem acreditar que algumas coisas eram possível, nunca deixou de sonhar, foi lá, e fez acontecer.
E enquanto deterioro no meu próprio tempo, sou feliz de te dizer que não importa a Geografia quando você está destinado a realizar coisas que parecem impossíveis. Talvez tolas pra quem não entende como a música é um instrumento importante para memórias e sobrevivência, mas imprescindíveis pra quem já foi salvo por uma batida.