Muita coisa mudou no cenário do mainstream após a morte de Kurt Cobain. A ascensão de Britney Spears e de grupos como Spice Girls, Backstreet Boys e *NSYNC, além do repeteco do debate sobre o que é punk e o que é pop após o sucesso de Blink-182, Green Day e outros, trouxe, de forma ainda mais marcante, o divórcio entre o pop e o rock.
O pop, que até então era um termo guarda-chuva para descrever a música popular do momento, passou por uma makeover mercadológica e virou o “anti-rock” — em outras palavras, o “anti-arte”, o produto feito apenas para fins comerciais, efêmero. E o rock? Tornou-se o underdog artístico, a girl next door buscando vingança da patricinha que faz bullying, como em Misery Business do Paramore.
Em outras palavras, ambos seguiram a cartilha de marketing que catapultou os Beatles e tornaram-se não apenas bastante rentáveis, cada um a seu modo, mas também catalisadores culturais que definiram o início dos anos 2000. Foi dessa configuração — inclusive questionada pelo já citado *NSYNC em seu disco Celebrity (2003) — que vimos emergir, no Disney Channel, a então adolescente Miley Cyrus.
Não existe um depoimento da equipe de produção sobre os estágios primários de Hannah Montana que não elogie sua habilidade vocal, presença de palco e talento. Mas, diante de um cenário em que as opiniões públicas sobre o que é pop pré-escrevem sua história, os eternos enlutados da não-falecida rock music questionaram por anos o merecimento de seu reconhecimento. Afinal de contas, Miley foi um produto do Disney Channel — explorada a ponto de desenvolver um desgaste permanente nas cordas vocais. Mas não há espaço para questionar a crueldade da indústria quando se joga pedras nas pessoas exploradas por ela.
Como tudo nesta vida é cíclico, assim como os LPs voltaram a ser uma força no mercado de mídia física, o pop vem mostrando que não existe um livro de regras, instrumentos específicos ou fórmulas definidas para ser pop. Transitando entre influências de diversos gêneros, Short n’ Sweet (último lançamento de Sabrina Carpenter) é um exemplo de que, no pop, há grande liberdade para ser o que se quiser, usando e abusando do estilo musical que lhe convier.
Mas enquanto Sabrina Carpenter dá entrevistas comentando que não gostaria de ser associada a um gênero específico, Miley Cyrus veste a camisa do gênero que sempre esteve à frente de sua carreira e nos mostra, com maestria, que não há nada de anti-arte neste laço da música com sua “pop opera”, Something Beautiful.
E sim, com um álbum psicodélico, experimental e distribuído gratuitamente para os fãs, outro que homenageia Elvis Presley, e um que reviveu sua carreira e a colocou no topo dos álbuns de rock mais vendidos da Billboard na discografia, ela poderia aproveitar-se da sonoridade do disco para vendê-lo como mais um projeto de rock. Porém, qual seria a graça — ou a transgressão — nisso?
A produção, assinada por ela e por um time de excelentes produtores — como Kid Harpoon (Harry Styles), BJ Burton (Bon Iver, Charli XCX), Michael Pollack (Beyoncé, Maroon 5, Kelly Clarkson) e seu namorado Maxx Morando — representa uma evolução significativa em relação a Younger Now, último álbum em que Miley assinou esse crédito. A mixagem cria uma atmosfera etérea e difusa, como uma viagem no tempo (e pela pista de dança) através dos ouvidos.
No disco, a influência da música dos anos 70 e 80 reverbera de maneira incrível. Something Beautiful (a música) tem uma guitarra imperante, digna de Os Mutantes. Já canções como Reborn, Every Girl You’ve Ever Loved e Walk of Fame (esta, inclusive, parece conter um sample de uma das minhas músicas favoritas do Joy Division, Blue Monday) parecem poduções de uma banda pós-punk europeia daquele tempo. Já Give Me Love, faixa que encerra o trabalho, soa como uma balada romântica que o ABBA escondeu da gente em algum momento da história.
Em termos líricos, porém, são as românticas que mais brilham: “I knew someday that one would have to choose, I just thought we had more to lose”, por exemplo, é reflexo de um amadurecimento e de uma visão bastante coerente sobre o término de uma relação amorosa. Pretend You’re God, numa veia mais cinemática, nos leva a um sonho distinto, onde imaginamos o rosto da pessoa amada — “Do you still love me? I gotta know. But keep quiet if you don’t.” Quem nunca quis acordar de um sonho assim que atire a primeira pedra.
Se o áudio desprende-se um pouco do compromisso com o “território conhecido” do mainstream, a versão em vídeo, que chega aos cinemas brasileiros em 27 de Junho, promete entregar tudo o que os fãs esperam do lado pop da artista: o vídeo de Easy Lover é o primeiro em anos onde vemos Miley, acompanhada de um balé, fazendo coreografia. Something Beautiful é, sem dúvidas, um dos meus projetos favoritos do ano. Não só isso, é também um lembrete de que ainda temos artistas bastante competentes no mainstream. O disco não é apenas um game-changer para Miley — é também um poderoso lembrete de que o pop é algo muito além do comercial: é uma legítima forma de arte, à sua própria maneira.