Disco

“Depois disso a gente vai entrar num processo de divulgação para o lançamento, como clipes”, diz. O lançamento em si deve vir por volta de maio ou junho, quando entra em todas as plataformas digitais

Por: Valcidney Soares, da Agência Saiba Mais

O artista potiguar — e potiguara — Juão Nÿn se aquece para o lançamento do Nhe’etimbó, seu disco solo de estreia com nove canções cantadas em Tupi. Aos 34 anos, o músico e ator Juão mora em São Paulo há 10, mas mantém ligação com o Rio Grande do Norte e seu povo.

Nhe’etimbó já teve um show de pré-lançamento no território Catu e no território do Amarelão, ambos potiguara, no ano passado. Neste ano, Juão iniciou as audições, como no Ceará e também em São Paulo.

“Depois disso a gente vai entrar num processo de divulgação para o lançamento, como clipes”, diz. O lançamento em si deve vir por volta de maio ou junho, quando entra em todas as plataformas digitais.

As audições que acontecem no momento funcionam como um encontro para fomentar a criação de público para um tipo de música que não está naturalizada no mercado musical: a Música Indígena Contemporânea. Apesar de ser uma língua nativa, para muitos o tupi ainda causa estranhamento. A proposta, para Nÿn, é fazer esse estranhamento virar entranhamento.

“As composições vão desde composições autorais a um catimbó registrado pelas missões folclóricas do Mário de Andrade em 1938. O catimbó é considerado por esses pesquisadores como feitiço, então eu falo que o meu disco — que é todo baseado no conceito do catimbó — é todo contra-feitiço”, reflete.

“São feitiços para desfazer os feitiços que fizeram sobre nós. Então, por exemplo, a gente vive num continente chamado América, mas é o nome do colonizador. A nossa terra nunca vai poder se chamar pelo nome de um colonizador, alguém que nos violentou, que machucou a terra. Então para nós povos indígenas esse continentes se chama Abya Yala, e aí tem uma canção dizendo, em tupi, para que a América viva a Europa tem que morrer, para que Abya Yala viva as Américas têm que morrer”, aponta o músico.

“Eu lembro de criança treinando meus amigos da rua para fazer teste para as Chiquititas, por exemplo”, lembra.

“Fui uma criança que brinquei todo dia na rua, então eu tinha uma interação com o lúdico, com a brincadeira todo dia”.

Mas a escolha pela arte como caminho de vida só viria mais tarde. Aos 12 anos, Juão se mudou com a família para Curitiba, e mesmo assim ainda não estava “acordado” para a arte, como descreve.

Foto: Natália Tupi

“Eu lembro que eu fiz coral,  mas a minha escola tinha teatro e eu nunca fiz teatro, não sei porque, não tenho a mínima ideia de porquê que eu não fiz teatro nessa época, não tinha o mínimo interesse. E aí quando eu voltei para Natal em 2004, eu falei para minha mãe que eu queria fazer teatro”, conta.

O pedido trouxe uma descoberta: a mãe o avisou que ele tinha um primo que fazia teatro, o ator João Júnior, à época em cartaz com o espetáculo “Muito Barulho por Quase Nada”, do grupo Clowns de Shakespeare.

“Ver o Clowns de Shakespeare foi muito impactante para decidir o que eu queria fazer”, define o multiartista.

Ele entrou numa oficina de teatro (ainda antes da faculdade) e, paralelamente, já tinha uma banda de rock pesado chamada AK-47. Foi também o período em que começou a estudar performance, que o notabilizou na banda.

“Eu botava ratoeira na língua, toquei com uma roupa com 240 baratas vivas. Eu fazia várias performances e as pessoas queriam ir para o show para ver que performance esse menino vai fazer hoje”, relembra.

“A música, o teatro, a performance sempre foram se retroalimentando a partir do momento que eu comecei a viver isso. A nossa banda, AK-47, tocava todo final de semana na Ribeira”, diz o potiguara.

Próximo do fim da faculdade, em 2013, Juão já sentia que estava adotando outros estilos de música, até mais românticas, que não tinham nada a ver com a AK-47. Daí surgiu a Andróide sem Par. O duo tem três obras: Grave (2013), Ruynas (2019) e Antena Rayz (2022).

Inquieto, mesmo em São Paulo e com os trabalhos musicais, Nÿn não desgrudou do teatro. Por lá, entrou no Coletivo Estopô Balaio, onde está há 10 anos.

“Eu vivo um teatro que é um teatro que acontece dentro do trem. São peças que têm duração de quatro horas, que são pelas ruas do bairro, que explodem as quatro paredes da caixa cênica. É um outro tipo de teatro, anticapitalista, político, pensando pela perspectiva histórica indígena também”, aponta.

Foi a partir da mudança para São Paulo que sua identidade começou a “inflamar no contraste”, como explica.

Foto: Mylena Sousa

“Quando a gente está longe da nossa terra, da nossa família, tudo em nós parece que inflama, contrasta. Por exemplo, eu não sabia que era nordestino, porque todo mundo era nordestino do meu lado, meus pais, todo mundo. Então a gente não falava sobre ser nordestino. Quando eu fui aos 12 anos para Curitiba, aí eu lembro de uma menina da sala de aula dizendo: ‘para de falar com esse sotaque de pobre’”.

“Eu fiquei: ‘meu Deus do céu, como assim? Eu nunca fui pobre’. Eu não tinha entendido a relação de ser nordestino e ser pobre. Aí lembro também de uma professora minha de matemática falando assim: ‘ah, vocês estão tirando com o Juão, mas Juão não é pobrezinho não, veio de Natal, a cidade turística, do litoral’, tentando criar um outro imaginário para as crianças ali. Imagine, se Curitiba hoje já é esse problema racista, fascista, imagine 22 anos atrás, era mais era bem mais complexo”, afirma.

Juão, então, foi se conectando não só com lideranças indígenas, mas com a história de sua própria família.

“Porque a gente é um estado muito específico na questão indígena. A gente é o único estado brasileiro que não tem terra demarcada, não tem vários reconhecimentos institucionais e burocráticos pela perspectiva indígena, então eu sinto que eu sou um guerreiro da cultura”, conta.

“Eu uso a cultura para criar novas narrativas, para que as novas narrativas criem novos imaginários e criem novas realidades também. Então acho que essa trajetória de criança brincando na rua e dançando Chiquititas com meus amigos para a AK47, faculdade de teatro, Androide sem Par, coletivo Estopô Balaio para hoje gravar um disco solo todo em tupi foi uma trajetória que eu sabia que eu precisava viver, que ela precisava existir para ser como as coisas são hoje. Era meu sonho gravar esse disco todo em tupi”, relata o artista.

Inclusive, se você acessar qualquer rede social de Juão Nÿn, vai perceber que ele troca a letra “i” pelo “y”. A escolha política veio por volta de 2017, quando começou a estudar a língua originária.

“Eu comecei a estudar muito tarde tupi, tanto com pessoas do meu povo, quanto com pessoas tupi-guarani que eu trabalho aqui em São Paulo na terra indígena Piaçaguera, porque em Natal a gente não tem acesso ao ensino”, diz.

Mesmo com as dificuldades para ter acesso ao ensino, Juão lembra que a língua está presente no nosso dia-a-dia.

“O tupi está na nossa boca o tempo todo, tá nas ruas da cidade. A gente fala ‘bora a roupa pra quarar no sol’. ‘Quarar’ vem de Kûara, que é sol”, relata.

A rua que seus avós materno e paterno viviam se chama Pajeús, outra palavra de origem indígena. Em São Paulo, ele está rodeado do Anhangabaú, Ibirapuera, Jaraguá e outros espaços.

Foto: reprodução @juaonyn

“Mas eu não sabia [dessa origem tupi] porque essas palavras estão desalmadas. A colonização tirou a alma dessas palavras. A gente tá ao lado delas, mas a gente não enxerga o que elas significam, o que elas são. A gente não vê o espírito dessas palavras”, lamenta.

As palavras, para o ator e músico, assim como para os demais indígenas, são como um formigueiro.

“É como se fosse a porta para algo muito mais profundo. Pra gente palavra é alma. Então colocarem uma outra alma sobre nós é quase como um exorcismo colonial, e esses demônios que colocaram dentro de nós são as colonizações”.

O Nhe’etimbó, então, vem com canções para “acordar desse coma colonial”, define.

“Como um guerreiro da cultura, eu acredito que tô fazendo esse disco para desarmar algumas armadilhas, algumas fantasias coloniais para que a gente olhe mais para dentro, para que a gente olhe mais para si”.

Entre os mil e um trabalhos, Juão também faz parte da Articulação dos Povos Indígenas do Rio Grande do Norte (Apirn) como comunicador. Neste momento, as diferentes entidades e povos indígenas do RN buscam arrecadar dinheiro para ir ao Acampamento Terra Livre (ATL), maior mobilização dos povos e organizações indígenas do Brasil que, neste ano, acontece em Brasília (DF) dos dias 22 a 26 de abril.

SAIBA MAIS: Indígenas do RN arrecadam dinheiro para ir ao Acampamento Terra Livre

Vai ser mais um momento para pressionar o governo federal pela demarcação das terras indígenas. Na última quarta-feira (3), a ministra dos Povos Indígena Sônia Guajajara esteve no Rio Grande do Norte, quando as lideranças indígenas se reuniram com ela para tratar sobre o tema e sobre as ameaças que as lideranças vêm sofrendo por defender seus territórios.

Juão Nÿn espera que as demarcações no RN venham o quanto antes.

“Eu sou muito esperançoso, não com o governo, mas com as nossas lutas. As nossas lutas são cada vez mais fortes, mais compreensíveis tanto dentro quanto fora, e acho que a Apoinme [Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo], Apirn, Apib [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil] estão cada vez mais fortes”, aponta.

Foto: reprodução @juaonyn