Entrevista

Ao final dessa experiência musical espiritual e visceral no Mimo Festival, Amaro Freitas recebeu o BOLSA DE DISCOS de forma muito tranquila e carinhosa para uma entrevista. Inicialmente eram seis perguntas; entretanto, por conta da profundidade e extensão das duas primeiras respostas do artista, a entrevista se encerrou, com nossas expectativas superadas enormemente

Por: Renan Simões, especial para o BDD

Amaro Freitas encerrou o Festival MIMO 2025, em Olinda/PE, de forma extraordinária. Foi, de longe, um dos melhores shows que assisti na vida. A magia do momento foi também potencializada pelo suposto silêncio do artista, que comunicou uma miríade de sentimentos e ideias ao público exclusivamente através de sua música, expressões e ações, sem pronunciar uma única palavra. Amei isso. recém-formado septeto do artista estava desfalcado: o trompetista Sidmar Vieira havia sofrido um acidente; tudo estava sob controle, mas ele não pôde comparecer ao show por conta do repouso. O pianista e compositor Amaro Freitas estava muito bem acompanhado: Alexandre Rodrigues (saxofone, flauta transversal e pífano), Beto Xamba (percussão), Henrique Albino (saxofone, flauta transversal e pífano), Rodrigo “Digão” Braz (bateria) e Sidiel Vieira (baixo acústico).

O grupo entrou no palco e atacou um frevo bem agitado, complexo, moderno e de tirar o fôlego. O público veio abaixo. A seguir, nos brindou com a elegantíssima Ayeye, do álbum Sankofa (2021), terceiro do artista (e meu preferido), com improvisos bem intensos dos músicos, seguido de um maracatu de rítmica bem complexa e explorações sonoras dentro do piano, tão características do álbum Y’Y (2024, pronuncia-se iê-iê), último do artista.

Seguiu-se com a impressionante Baquaqua, uma pérola do minimalismo contemporâneo, e a super imersiva Suíte Amazônica, com diversas explorações sonoras acústicas e eletrônicas, trazendo ao público, de forma bastante convincente, a imponência da floresta, objeto do último álbum do artista. O show finalizou em um tom bastante introspectivo, quase silencioso. Por fim, a banda retorna para tocar uma versão incendiária de Encantados, com os improvisos individuais e coletivos que foram até as últimas consequências, irrompendo, em um dado momento, em um reggae inusitado e irresistível, e em uma salsa bem brasileira.

Ao final dessa experiência musical espiritual e visceral, Amaro Freitas recebeu o BOLSA DE DISCOS de forma muito tranquila e carinhosa para uma entrevista. Inicialmente eram seis perguntas; entretanto, por conta da profundidade e extensão das duas primeiras respostas do artista, a entrevista se encerrou, com nossas expectativas superadas enormemente.

Amaro Freitas, durante o Mimo Festival (Renan Simões/BDD)

Renan Simões (Bolsa de Discos) – Quais foram e são as suas principais influências, para você se apaixonar pela música, para você se tornar músico, se tornar pianista, e ainda nos dias de hoje?
Amaro Freitas – Tem a música da igreja, onde eu comecei ali, Harpa Cristã. Tem a coisa do canto gospel, Igreja Evangélica. Depois tem uma influência do jazz, Chick Korea, Thelonious Monk, Cecil Taylor, John Coltrane, toda essa galera. Aí depois chegou Moacir Santos, Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos, Egberto Gismonti, Tia Amélia, Chiquinha Gonzaga. Essa coisa toda foi chegando. Aí depois uns outros pianistas pretão, assim, que foram chegando, como Dom Salvador, Tânia Maria, Laércio de Freitas. E aí eu acho que, da parte musical, essas são grandes influências.

BOLSA DE DISCOS  – Sobre a sua discografia, a gente tem Sangue negro, com composições jazzísticas, interpretações com aspectos mais tradicionais. E é incrível como em Rasif, com a mesma formação instrumental, você alcançou uma expressão muito mais original, intensa, extremamente brasileira, especialmente afro-brasileira. De forma assombrosa, depois Sankofa vai muito além nesse aspecto, e se torna um marco absoluto do jazz mundial. Evitando essa repetição de fórmulas, nesse último álbum, você fez essa experiência no Brasil profundo, para respirar essa atmosfera etérea. Pergunto qual a leitura e reflexão que você faz das transformações ao longo desses trabalhos.
Amaro Freitas – Então, acho que esses trabalhos fazem parte da minha construção enquanto vivência mesmo. É o outro lado, que não faz parte das referências musicais, mas referências da vida. Eu sempre fui muito atento ao estado, ao momento, ao aprendizado que eu posso ter, à oportunidade de conhecer uma coisa diferente.
Então, em Rasif eu estava me conectando de uma forma mais potente com a cena literária. Eu descobri, através do livro Rasif: mar que arrebenta, de Marcelino Freire (grande poeta), que esse nome, Rasif, na etimologia, vai virar Recife. É uma palavra árabe, e aí eu vou atrás dessas referências árabes, que também existem aqui, através da rabeca, da cantoria, da glosa. Uma cultura muito forte no Sertão do Pajeú, que são 17 municípios – talvez o mais famoso seja São José do Egito. Inclusive, Moacir Santos vem de Flores, né? Pajeú das Flores. Aí eu vejo o Coco Trupé, que é de Arcoverde, e eu fico encantado com aquilo. Eu estou numa relação muito forte com o Ceará nesse período, tocando muito no Ceará, e faço um baião em homenagem a uma cearense chamada Dona Eni. Então, esse disco é meio que uma declaração de amor ao meu território nordestino e recifense.

 

BOLSA DE DISCOS – E Sankofa…

Amaro Freita – Sankofa é um momento onde eu começo a descobrir a minha ancestralidade. Então, histórias como Tereza de Benguela, como Baquaqua. Tereza foi uma rainha, Baquaqua foi o primeiro ex-escravizado que escreveu sua autobiografia. Então, tem essa história partida em um crivo, que é um homem negro. Tem Milton Nascimento, pela proximidade que eu estava tendo com o Milton, de ir na casa dele, conviver com ele. Cazumbá, que é um ser místico e mítico do Maranhão. Então, eu acho que tudo isso foi criando essa formação do Sankofa.
Com a experiência de estar fazendo algumas turnês fora do Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, eu comecei a ver uma diáspora africana que tinha outros códigos, outras formas de se comunicar. Tudo isso também me encheu de alegria e de inspiração para compor. E aí houve justamente essa vivência que eu tive na Amazônia, de chegar lá e dizer: “meu Deus, isso aqui é Brasil?” Eu descubro um outro Brasil, uma outra comida, uma outra forma de se transportar pelo rio. Uma semana para chegar num lugar, um mês para chegar num lugar, um outro tempo. Vários fenômenos, como o Rio Negro com o Rio Solimões, dentre os quais a água não se mistura. Ir lá na aldeia indígena e conhecer o Sateré Mawés, e de começar a ter uma troca real sobre música, sobre experiência. E aí, nasce esse disco Y’Y.

 

Amaro Freitas, após entrevista ao BOLSA DE DISCOS

BOLSA DE DISCOS – Interessante. Fale um pouco mais…
Amaro Freitas – É curioso, porque Sangue Negro (o primeiro álbum do artista) é um disco da minha transição, desse Amaro que entra na faculdade, se descobre também como um homem negro, que vai deixar o cabelo crescer, o black. A partir dos outros, Rasif, Sankofa, Y’Y, esses discos não têm o nome do colonizador. Então, não tem nada em português, em inglês, francês, italiano. Não tem nada disso. Os nomes são outros nomes. É árabe, é africano e é indígena. Então, acho que isso também é sobre uma desconstrução colonial, entender esses Brasis a partir de uma outra perspectiva, que vai para um lugar extremamente de trabalho de campo, de entender essas referências e essas raízes, mas para um lugar também muito subjetivo.
Quando eu faço a música para Tereza de Benguela, eu não estou pesquisando o ritmo que veio da cidade de onde Tereza veio, da África. Eu estou tocando aquilo que vem do meu coração, quando eu penso em um abraço que eu gostaria de dar em Tereza, e dizer “muito obrigado por você ter existido”. Aí, eu fecho os meus olhos e imagino Vila Bela, imagino eu dando um abraço em Tereza e começo a compor a música. Então, existe um lugar da imaginação, do criativo, que é quando mesmo por fora acorrentado, eu consigo me transportar e estar em vários lugares dentro de mim.