Crítica

São muitos os ensinamentos do Galego, é bonito vê-lo no palco derramando amor, política, poesia. É potente ver um artista que pensa sua produção como obra e que deixa transparecer o inefável e o mistério da criação artística em sua essência

Por: Pérola Mathias, do Poro Aberto

Otto tem rodado o Brasil apresentando o show comemorativo dos 15 anos do disco “Certa manhã acordei de sonhos intranquilos”, lançado em 2009, de forma independente, pelo selo Nublu. Assistindo a chegada do show no Sesc Pompeia, confesso que, ali da plateia, me senti íntima do cantor, como se fosse da família. Porque desde que ele lançou “Samba pra burro”, em 1998, acompanho os momentos de destaque de sua carreira, de alegria e tristeza, de dor e celebração. E o contrário é ainda mais verdadeiro, obviamente: suas músicas me acompanharam na fossa, nas noitadas, nas diferentes cidades em que morei, sob o sol escaldante do carnaval do Rio de Janeiro etc.

Otto subiu ao palco da choperia com vigor e já mandando música, com uma banda que não fica nem meio milésimo de segundo atrás de seu comando. A abertura, assim como no disco, ficou por conta da catártica “Crua”, que contou com com o coro derramado da plateia. Otto vestia uma blusa preta e, por cima, um colete também preto de couro e plumas. Antes mesmo de chegar à parte final da canção, o vimos cumprir seus clássicos rituais de palco: jogar água sobre o cabelo ruivo e tocar percussão (um dejmbe, talvez) que estava no chão, atrás dele.

Já ali despertamos para a configuração da Jambro Band no palco e a ânsia do cantor em tocar o show mantendo a energia no alto. A Jambo Brand é Junior Boca e Guri Assis Brasil nas guitarras, Meno del Picchia no baixo, Yuri Queiroga nas teclas, programação e percussão, Beto Gibbs na bateria e Malê na percussão. Faltava Malê e seu set no palco – soubemos depois que ele havia passado mal e foi internado às pressas na UTI.

“Go, Band!”, Otto dizia, e os músicos aumentavam a pressão e a distorção. E, então, veio “Janaína”, música que saúda o dia de Iemanjá em Salvador e sua clássica festa no Rio Vermelho. O mais impressionante de “Janaína” não é o fato de ser uma das faixas mais “pop” do disco ou de ser adorada por todos os públicos, mas a forma como ela parece flutuar por diferentes ritmos dentro dela mesma – começa parecendo uma ciranda, mergulha no universo percussivo e passeia pelo experimental, sobretudo na versão gravada que conta com o saxophone de Ilhan Ersahin.

“Certa Manhã…” foi lançado em setembro de 2009. Não me lembro exatamente se foi logo no 2 de fevereiro do ano seguinte ou apenas em 2011 que o cantor passou a ter seu espaço na festa, quando anunciou sua presença com o bloco carioca “Me beija que sou cineasta”, com cortejo e feijoada em parceria com a Casa da Mãe. Tampouco me lembro se chegou a levar o show do disco ainda no primeiro semestra para a cidade, mas com certeza ele o apresentou na Concha Acústica em setembro de 2010.

Antes disso, ainda, me lembro como se fosse ontem do dia 18 de janeiro de 2010, meu aniversário, numa viagem ao Rio de Janeiro, em que um amigo local me disse: “entra no Othon (Palace Hotel), faz cara de hóspede, vai direto para o elevador e sobe para o terraço”. Eu, que tinha ido à cidade para apresentar um trabalho na 10ª Bienal da UNE, segui o roteiro, acompanhada de uma amiga que viajava comigo. Lá em cima, tomamos uma garrafa de vinho, dividimos o pedaço de torta que veio de surpresa para o parabéns e conversamos profundamente sobre a versão de Otto para “Lágrimas Negras”.

Falávamos sobre a dor que teria levado o cantor e compositor a escolher a música de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, eternizada por Gal Costa no disco “Cantar”, de 1974, para ser uma das 10 músicas de seu 4º disco de estúdio. Todos nós tinhamos notícias sobre a vida pessoal do cantor pelos tabloides. Portanto, sabíamos bem a quem o verso “são poços de petróleo, a luz negra dos teus olhos” era endereçado naquele contexto. Mas nenhuma paixão, nenhum amor, até ali, quando eu inaugurava meus 21 anos, tinha me feito sentir, nem de longe, a força da expressão “tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento”. E que, como contrapeso ao antes desconhecido, torna outra a intensidade da luz que acende as belezas.

No disco, o arranjo da música tem a guitarra de Catatau (Cidadão Instigado), algumas programações feitas também por ele e percussão, por Marco Axé e Pupillo (produtor do álbum junto a Otto). É tão suave quanto a versão de Gal, que tinha guitarra de seu produtor Perinho Albuquerque. Os agudos suaves que Julieta Venegas canta em sua participação no disco é substituído pela voz, também suave, de Lavínia no Pompeia. A companheira do cantor é coberta de afeto e carinho por ele, o que torna a ideia do início ainda mais forte: somos testemunhas de sua vida artística e pessoal, bem como suas músicas nos testemunham no íntimo.

No entanto, o que eu e meus amigos, lá no Rio de Janeiro em 2010, não sabíamos era que a música, na verdade, compunha a trilha sonora de “Solo Dios Sabe”, filme de Carlos Bolado. O lomnga é a primeira co-produção de cinema entre Brasil e México (país natal de Venegas) que resulta do Acordo Latino-Americano de Co-Produção, assinado na Venezuela em 1989.

A presença de Catatau criando as músicas e tocando no “Certa Manhã…” foi fundamental para identidade do disco, que marca uma virada estética e sonora na carreira de Otto até então. Era o primeiro disco do pernambucano no qual o cearense gravava e ele relembra a participação:

Sempre curti muito o trabalho do Otto já e tocava com ele fazia um tempo, mas nunca tínhamos feito nada em parceria e acho que isso só aconteceu nesse album. Já tocava com a galera toda, Pupilo, Dengue, Axé, Malê, e tínhamos muita intimidade tocando. Quando entramos no estúdio, foi um clima incrível. Todos criando arranjos, compondo, tocando… Lembro bem de usar duas guitarras na época, minha Hofner 4578 e a Giannini Craviola. Teve um lance que foi muito legal e marcante nesse disco que foi quando o Otto resolveu trazer mais o seu lado romântico à tona. Acho que a partir daí as coisas começaram a mudar. Acho o “Certa manhã…” um disco muito lindo. Só agradeço por ter feito parte dele.

Se antes Otto havia ganhado projeção na música pela mistura até então original entre a música eletrônica e os ritmos brasileiros, sobretudo os de Pernambuco, naquele momento de sua carreia a fórmula bastava apenas às gravadoras que, acomodadas, não queriam mexer em time que estava ganhando, muito menos investir. A decepção de Otto com a Trama resultou no rompimento da relação – na época, ofereceram ao cantor uma quantia irrisória para que ele gravasse seu novo disco, dizendo que o CSS havia feito um disco de sucesso com baixo orçamento. É realmente difícil entender a falta de compreensão da indústria fonográfica sobre seus produtos – algo, diríamos, kafkiano.

As escolhas dos músicos que entraram no álbum também tem muito a ver com a escolha de Pupillo, então baterista da Nação Zumbi, para produzir junto o álbum. Segundo o próprio Otto, a conexão entre os dois foi importante:

eu e Pupillo temos uma harmonia muito grande. Eu como compositor, cantor, ele como produtor. A gente sabe o que aproveitar de melhor, temos esta gama de amigos músicos e produtores extraordinários e tivemos colaboradores como Apollo e Kassin, Catatau e tantos outros. E ele foi produzindo e juntando músicos.

O talento de Otto para reunir seu time de músicos sempre foi algo impressionante, que o diga hoje a Jambro Band, em que os integrantes já o acompanham coisa de 8 ou 9 anos, como Guri e Meno, ou há 20, como no caso de Boca. Por mais que nenhum deles tenha gravado no disco, que tem apenas Catatau como guitarrista, Boca diz que as adaptações são mínimas para caber as duas guitarras e que eles tentam se mater o mais fiel possível ao original.

Hoje, após 15 anos, Otto reflete que

esse álbum foi [feito] num momento tumultuado de emoções, foi em meio a perdas e conquistas, um disco que tem dois filmes envolvidos, “Árido Movie”, de Lírio Ferreira, e “Solo Dios Sabe”, de Carlos Bolado. Eu estava realmente vivendo um turbilhão, estava inspirado, sensível… ter TUNGA fazendo a arte, Cafi fotografando com Thalita Miranda, Catatau, Julieta gravando “Saudade”, “Lágrimas Negras”, tanta música sentida. Realmente, ele tem as virtudes mais intensas em um único disco.

É difícil escolher, assistindo a esse show, um momento auge – já que sabemos as músicas de cor e salteado e ansiamos por todas elas. Já no disco, é impossível passar incólume por “6 minutos” e o resultado da combinação entre o peso dse sua sonoridade e fluxo exacerbado de sentimentos da letra: Nasceram flores num canto de um quarto escuro / Mas eu te juro, são flores de um longo inverno. Ou seja, a cada canção de “Certa Manhã…”, por mais tristeza que exista, uma chama sempre resiste.

E, nesse (des)equilíbrio, o mundo dança e se embalança no meio de todo o turbilhão. Em “Filha”, os dos dois lados da moeda estão colocados de forma clara: Aqui é festa amor / E há tristeza em minha vida. Um papo reto e sincero em forma de poesia que, por quantos anos, muitos de nós tiveram que fazer análise para entender que é possível a coexistência desses sentimentos, que momentos e pessoas que importam podem e precisam saber qual o panorama do que se passa em seu peito. Muito mais que isso, que a balança entre os opostos pende a cada única passagem da vida e elas são fugidias como a gota d’água que cai em ferro quente, por mais que não pareça.

Além da separação da então companheira e da gravadora, Otto enfrentava outro luto quando fez o “Certa Manhã…”, o falecimento de sua mãe. A dor expressa na música de Sergio Bittencourt para Jacob do Bandolim que ele traz para o álbum é genuína. “Naquela Mesa”, de 1967, segue sendo uma das canções mais bonitas da música brasileira sobre a perda parental, ao lado, por exemplo, de “O Espelho”, de João Nogueira. Porém, não foi este o fato que fez com que Otto a gravasse, e sim sua presença na trilha do “Árido Movie” de Lírio Ferreira, cuja trama se desenrola a partir da morte do pai da personagem principal, vivida por Guilherme Weber.

A faixa conta com Kassin e Berna Ceppas, que também assinaram a trilha do filme. E, sobre a criação da releitura, Kassin relembra:

“Gravamos essa música com o Lafayete [Coelho], que era organista dos discos iniciais do Roberto Carlos, no meu estúdio. Eu tenho o órgão Hammond que pertenceu a ele naquela época e, quando ele entrou pra gravar, abraçou o Hammond e falou “meu órgão!”. Esse “meu órgao!” É uma piada que até hoje fazemos quando nos encontramos”.

O tempo seguiu. E novamente me vi íntima de Otto e suas dores. No único carnaval que passei em Recife, em 2017, estive na plateia para assisti-lo contar que havia perdido o pai. Lembro de vê-lo vestido de boxeador, os gestos, as canções, a chuva que caiu naquele dia no Rec Beat. No Sesc Pompeia, ouvi ele anunciar o estado de Malê, que, sim, em breve ficará bem e deve saber que a banda tocou com tudo para manter o astral, mesmo com sua ausência, pois era a melhor forma de trazê-lo para o momento. Porém, era visível a preocupação estampada no rosto de Otto, que perdeu o percussionista Marco Axé em 2017 e Hugo Carranca, que não resistiu a um tumor, em 2020.

Nos últimos dias 15, 16 e 17 de agosto em que esteve no Sesc Pompeia, Otto ressaltou a alegria que foi estar naquele lugar histórico, projetado por Lina Bo Bardi, templo das artes em São Paulo desde o final da década de 1980, e como a direção do Sesc São Paulo por Danilo Miranda foi fundamental na vida de milhares de artistas do estado e de fora. A falta do ex-diretor, falecido em outubro de 2023, já mudou toda a configuração cultural do projeto e suas unidades.

Para entender, por fim, de maneira ainda mais profunda o que significa os 15 anos desse disco que tanto marcou Otto, a música brasileira e seu público, perguntei ao cantor como ele olha para o disco, hoje, e o que o Otto de 2009 diria para o Otto de 2024:

Eu olho com muito orgulho, segurança que meu trabalho evolui com o passar dos tempos e que a poesia e a música devem ser sempre engrandecidas, referenciadas, que a gente tenha sempre lugar pra o bom gosto e autenticidade. Sou de verdade, minha música também. E, 15 anos depois, este álbum ainda repercute como obra. É oxigênio pra arte, pra música. [Para o Otto de hoje] diria o que sempre soube: pra cuidar da fonte da música, dos músicos, do público, da poesia, dos amigos, sempre ter mais romantismo do que ambição. Viver o presente e evoluir sempre.

Depois de 1 hora de show, somando 40 minutos, mais ou menos, que duram a soma das 10 músicas do “Certa Manhã”, mais as interações e intervalos, Otto sai do palco e retorna rapidamente, sem tempo para que a plateia pedisse bis. “Go, Band!”, ele ordenou, e nos deliciamos ainda com os hits “Bob”, “Lavanda”, “TV a cabo”, “Dias de Janeiro”, “Carinhosa”, “Em plena lua de mel”, “Low”, “Ciranda de Maluco” e “Cuba”.

São muitos os ensinamentos do Galego, é bonito vê-lo no palco derramando amor, política, poesia. É potente ver um artista que pensa sua produção como obra e que deixa transparecer o inefável e o mistério da criação artística em sua essência.