Hip Hop

Nas ruas da cidade, a Batalha dos Deuses reúne jovens artistas difundindo a cultura do rap em Mossoró

Por: Joyce Neres e Yasmim Queiroz — Da Agência Vozes do Semiárido

Estamos em Mossoró, terra que expulsou o bando de Lampião, em 1927, numa façanha que marca até hoje a história da cidade. Nesta região norte-rio-grandense se consolida um movimento que mistura ritmo e improvisação, semelhante às conhecidas histórias de cordel. Diferente das feiras populares, espaços marcantes do cordel, o palco deste movimento é a rua.

A pista de skate é o palco. No meio da plateia, ecoa o grito: “O que vocês querem ver?”. Do outro lado vem a resposta cheia de empolgação: “Sangue!”. A pergunta se repete: “O que vocês querem ver?”. De novo, o grito: “Sangue!”. Quem passa por perto sem saber, imagina de imediato uma briga. Há, inclusive, quem prefira se benzer. Mas, na praça, a batalha tem uma única arma: a rima. A energia e vibração mantém o clima de confronto da Batalha dos Deuses (BDD), a disputa onde os versos são a arma, o conhecimento é gás, a rua é plataforma, e a juventude é protagonista. As batalhas, iniciadas em 2021, costumam acontecer uma vez por semana, em Mossoró, na Praça do Skate, reunindo MCs, skatistas, grafiteiros e admiradores da poesia urbana. Em outros dias, o movimento migra para o Memorial da Resistência.

Encontros acontecem na Praça dos Skates, em Mossoró

Na rua, o preconceito é disparado por olhares e falas que acertam cor, cabelo ou mesmo uma simples tatuagem. Julgada como favelada, marginal, vândala, pobre ou raivosa, a juventude periférica mossoroense segue gritando sua cultura, origem e raiz. Assustam com a batida agitada, agressiva, que tira o fôlego e faz o suor pingar. Beats e rimas aceleradas, evocam, frente a frente, os deuses, no caos e glória que as ruas noturnas da cidade oferecem. No comando da batalha, os deuses Jonas, Sam e Boca. Para os mortais, Jonas Barbosa, Sanderson Silva e Lucas Felipe.

“Nosso objetivo é que as pessoas possam se expressar rimando, espalhando a arte pouco conhecida nas ruas da cidade, abraçar um espaço que é quase inexistente, fazer pessoas se identificarem e apoiarem a causa. Portanto, assim, possam se educar através da arte”, explica Sam, MC e um dos líderes da Batalha dos Deuses.

Dois anos após criação, a comunidade da BDD se consolida aos poucos, com novas pessoas chegando para somar na organização do evento. E melhor: o espaço já não é mais somente dos homens. Lígia Cristyanne e Sara Rebeca, recém chegadas à batalha, assumiram parte da organização, principalmente nas estratégias de mídia e divulgação. Ao mesmo tempo, o público começa a crescer.

A direita, Boca e ao seu lado Cleverson, primeiro e terceiro lugar segurando ranking e premiação da noite

Quem são os deuses?

“Batalha dos deuses, essa simbologia vai muito em uma questão de guerra de gigantes, tipo uma batalha no Olimpo, todos são capacitados e fortes”, abordou Barbosa, participante e organizador da batalha. Assim entende-se a titulação como objeto de força e capacitação aos participantes.

Como os deuses chegam ao topo? Com o objetivo de mapear os MC ‘s da cidade, a organização aderiu ao ranqueamento das edições, subdivididos em dois: mensal e anual. Assim, a cada dois meses após a súmula de pontos é reiniciada. Já o anual soma todos os títulos em doze meses, e os pontos dividem-se da seguinte maneira: primeiro lugar — 3 pontos, segundo lugar — 2 pontos, terceiro lugar — 1 ponto.

De nome artístico Boca, Lucas Silva tem 22 anos e pretende crescer no RAP, através da BDD. O top 1 da terceira temporada, já esteve no pódio na primeira fase e rima há cerca de três anos.

O mais novo entre os três primeiros é conhecido popularmente como Kaiser. Gabriel, tem 15 anos e já na sua primeira batalha, chegou ao primeiro lugar da noite. Ele conta que se conectou com o RAP há três anos através de vídeos e começou a praticar sozinho até chegar na BDD.

O terceiro lugar está ocupado por Cleverson Rebouças, jovem de 23 anos que costuma participar da BDD, e desenvolve a atividade de rima há 6 anos. Além disso, o mesmo tem uma música autoral lançada em seu canal do YouTube, com 2,3K de visualizações.

Kaiser expondo o ranking, onde ficou em segundo lugar 

O que é uma batalha de rima?

A reunião entre vários mestres de cerimônia (MC ‘S), duelando entre si, que ocupam praças, pistas de skate, e qualquer espaço público ou privado, conta com poucos elementos: uma caixa de som com o beat, rimas improvisadas, e djs. É o bastante.

A magia acontece mediante abordagem de diversas temáticas, dentre elas: rimas ideológicas (mostra a realidade); gastação (engraçadas); trocadilhos (duplo sentido) e “speed flow” (rápidas). O formato dos duelos, geralmente, é variado entre 1×1 e 3×3, ou da maneira combinada pré-batalha. O vencedor pode ganhar desde um ranking representativo, a premiações em dinheiro, e o embate é decidido pelo público presente.

“Quem sabe faz ao vivo”. Como diz o ditado popular que ecoa no ambiente da batalha, a arte do improviso e raciocínio lógico, constrói um espaço democrático, capacitando e promovendo debatimentos de diversos estilos e lugares.

Os competidores Levi e Guilherme, cara a cara durante a batalha. Fotos: @deuses.batalha Edição: @vii_hellen

Artistas independentes

LEVI SOARES

A cultura Hip Hop vem atravessando barreiras, ajudando pessoas e motivando aqueles que estão à sua volta. Formando artistas, espalhando conhecimento e vivências em forma de música, poesia e rima.

Levi Soares é um dos jovens que começou a rimar no Parque Ecológico Professor Maurício de Oliveira apenas por diversão e entretenimento dos amigos. Ele começou a se envolver no movimento e se aprofundar, dentro da Batalha da Chave, uma das primeiras em Mossoró. No começo, perdeu várias batalhas, mas seguiu no movimento aprendendo e inspirando-se em artistas como MC Marechal, Amiri, Emicida e outros MC´S nacionalmente conhecidos.

“Comecei a estudar poesia, quando você tá fazendo rima é ritmo e poesia, é RAP, tem que ter uma certa cadência poética” Tem que ser rápido e precisa de muito treino, gosto de rimar de forma estética para impressionar e desenvolver melhor a rima”, ressalta Soares. Assim, informando a sua maneira de elaborar suas rimas. Não só no Hip Hop, mas também outros estilos musicais é notório a singularidade de cada um, é o que deixa único o espaço e traz diferentes tipos de públicos e interesses.

SANDERSON SILVA

Um jovem negro, com vitiligo, o filho mais velho de seis, não teve criação paterna, apenas sua mãe como única orientadora. Tinha tudo para dar errado aos olhos da sociedade, mas se encontrou no RAP enquanto ainda estava no ensino fundamental. Teve também uma influencia de sua mãe, dona Lucilene, que escutava o genêro R&B frequentemente em casa.

Com apenas 14 anos começou a rimar na sala de aula. Ás vezes os professores interrompiam e mandavam parar aquela barulhera que estava acontecendo. Mas era só ele. O beat era idealizado com a boca, e o seu público era só alguns colegas de classe. Ás vezes, nenhum.

“Ao longo dessa caminhada, o RAP me deu vários irmãos, um deles foi Reny, que foi meu primeiro irmão, e começou a rimar comigo na escola, estamos juntos nessa jornada”, informa Sam. O RAP é uma trilha o qual não se pode fazer sozinho, é preciso de aliados para que se possa crescer, e quando se faz o que se gosta com amigos ao lado, fica bem prazeroso.

O deus Sam em ação na rima

Sanderson não levava muito a sério as batalhas no começo. Participava mais na tentativa de evoluir suas próprias rimas, e por isso ele passou anos rimando sem ganhar uma batalha. Suas vitórias começaram a aflorar há menos de dois anos. “Não vá só pensando em resultado, vá pensando em evolução” esta é a dica que o MC passa para aqueles que estão começando agora no movimento.

Atualmente, o artista tem algumas músicas lançadas em seu canal de YouTube, onde a música “Marcas” acumula mais de mil visualizações. Também tem seu trabalho divulgado no Spotify e divulgação em suas redes sociais.

CUMPADI CABOCO

Luan Alves Gondim (Cumpadi Caboco),é estudante de música da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), e visa seus estudos e práticas sobre temáticas culturais. A veia artística do cidadão mossoroense que já atuava como rapper, beatmaker, produtor e em demais funções do meio, seguia saltando com a necessidade de produzir algo maior.

O documentário era um sonho pessoal de Caboco, a qual começou a se concretizar a partir de maiores contatos com a Street Dance, as danças urbanas. Com a frequência dos encontros, o graduando pode analisar ser o mais velho, mas não o mais experiente, assim instigando a curiosidade a respeito de como surgiu o movimento na cidade e quem estava por trás dessa raiz histórica.

Nasceu “O Hip Hop Que Brota No Sertão de Mossoró”. O processo de pesquisa do documentário desenvolve-se a partir da primeira fonte, DGois, que continuou frequentando as ações e foi capaz de encaminhar outros pioneiros como Flay Alves, Wendel Ricardo e Altemar Wotson. A partir do acesso às pessoas, as narrativas foram se encorpando com ferramentas como fotografias da década de 80.

A falta de apoio e políticas públicas é um questionamento permanente. Entretanto, nadando contra a maré, o barco segue em equilíbrio, forte e potente. “E eu sinto que aqui em Mossoró a galera tem muito potencial. Em questão de MC ‘S com boas letras, dançarinos com bons movimentos com gingado, swing, excelentes grafiteiros”, aborda Caboco.

CONFIRA O DOCUMENTÁRIO

https://youtu.be/xGOeezvzDhk

CARLOS MOSSORÓ — RAP É CONHECIMENTO

“Na adolescência, tive o primeiro contato com o hip hop. Via a realidade crítica… e dizia: como é que pode? Não entendia política, mas entendia a poesia do GOG”, se pergunta Carlos Mossoró, na letra de Resgates, colaboração com Sandra, e a primeira música lançada do cantor e admirador da cultura Hip Hop.

Um CD exposto do Planet Hemp, seguido do aviso “proibido para menores de 18 anos”, plantava a semente de curiosidade na cabeça do jovem, menor de idade, ainda conhecido como Carlos Guerra Júnior. Acompanhar sua mãe nas idas a loja de CD, passou a ter gosto diferente, quando o adolescentes aguardava acessando e escutando os cds abertos até que tivesse condições de comprar. Assim o vínculo que pendura sua vida, iniciava.

O acompanhamento do movimento cultural pôde se estender a pesquisas acadêmicas e as análises de RAP estamparam o protagonismo de seu mestrado e doutorado. Contudo, foi graças a uma aula que presenciou em 2013, onde foram apresentados e discutidos aspectos críticos dos meios de comunicação, que o interesse aumentou. “Vocês vão fazer dissertação de mestrado que vai combater isso, que vai reforçar isso, ou que vai fazer de conta que isso não existe?”, questionou a professora, após vídeo de caráter social entre crianças negra e branca, e as devidas reações ao decorrer do vídeo.

Dessa maneira, Carlos analisou dois rappers e a rejeição dos mesmos aos meios comunicativos, podendo perceber a exclusão devido ao grande histórico racista, exclusivo e ditatorial da Globo, por exemplo. Fora isso, foi possível assemelhar o rap nacional a aspectos do angolano e moçambicano, buscando entender como essas histórias se encontram e como isso tem haver com o colonialismo. Assim surgia a tese RAP COMO FORMA DE ATIVISMO POLÍTICO NO ESPAÇO LUSÓFONO — Estudos de caso no Brasil, Portugal, Angola e Moçambique.

Atualmente, o jornalista mossoroense atua como docente na Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e entre suas disciplinas ministradas, uma optativa para qualquer estudante da universidade: Estratégias de Comunicação da música RAP, mostra como os rappers comunicam e a ligação do gênero aos aspectos sociais. As aulas acontecem semanalmente, com a exposição de músicas e debates relacionados a mesma.

PL13 STUDIO — Uma casa para o hip-hop

A partir da necessidade de qualificar a gravação das narrativas teatrais e apresentações escolares, com o acompanhamento da evolução dos gêneros rap e trap, nasce em 2020 a produtora musical PL13 Studio. “Como eu estava gostando muito de ouvir esse estilo, então tive a curiosidade de pesquisar por artistas em nossa cidade que cantavam Rap/Trap”, comenta o proprietário, Arion Lima. O mesmo fez questão de procurar conhecer o trabalho de artistas locais e assim se deparou com a necessidade de uma melhor captação de som, para que as músicas obtivessem resultados maiores.

A gravadora já trabalhou com 30 artistas independentes, e produziu 100 fonogramas. Oferece diversos serviços como a gravação, mixagem, masterização, produção de instrumental e plano de acompanhamento artístico. Além disso, possuem três artistas fixos (Betowsk, eiBrenno e MDR), e mais de 300.000 streams inserindo todas as produções.

“Acredito que consegui cumprir meu objetivo: democratizar o acesso a gravação de qualidade para artistas locais do Rap/Trap. Vários tiveram a oportunidade de conseguir gravar seu som com a qualidade que antes não tinha acesso”, finaliza Lima.

Esta reportagem é fruto das atividades da disciplina Produção de Texto Jornalístico I, do curso de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), ministrada pelo professor Esdras Marchezan.